Por DIEGO MÜLLER

domingo, 18 de janeiro de 2015

Cesária Évora...

 

CESÁRIA ÉVORA
(Mindelo, 27 de agosto de 1941 — Mindelo, 17 de dezembro de 2011)

Foi a cantora de maior reconhecimento internacional de toda história da música popular africana, cabo-verdiana. Apesar de ser sucedida em diversos outros géneros musicais, Cesária Évora foi maioritariamente relacionada com a morna, por isso também foi por vezes apelidada "rainha da morna" . Era conhecida como a diva dos pés descalços.

Cesária Évora tinha quatro irmãos. O pai Justino da Cruz tocava cavaquinho, violão e violino. Quando jovem foi viver com a avó, que havia sido educada por freiras, e assim acabou passando por uma experiência que a ensinou a desconsiderar a moralidade excessivamente severa.

Entre os amigos estava B. Leza, o compositor favorito dos cabo-verdianos, que faleceu quando ela tinha apenas sete anos de idade. Desde cedo, Cize, como era conhecida pelos amigos, começou a cantar e a apresentar-se aos domingos na praça principal da cidade, acompanhada pelo irmão Lela, no saxofone. Mas a vida está intrinsecamente ligada ao bairro do Lombo, nas imediações do quartel do exército português, onde cantou com compositores como Gregório Gonçalves. Aos 16 anos, Cesária começou a cantar em bares e hotéis e, com a ajuda de alguns músicos locais, ganhou maior notoriedade em Cabo Verde, sendo proclamada a "Rainha da Morna" pelos fãs. Aos vinte anos foi convidada a trabalhar como cantora para o Congelo - companhia de pesca criada por capital local e português -, recebendo conforme as actuações que fazia.


Em 1975, ano em que Cabo Verde conquistou a independência, Cesária, frustrada por questões pessoais e financeiras, aliadas à dificuldade económica e política do jovem país, deixou de cantar para sustentar a família. Durante este período, que se prolongou por dez anos, Cesária teve de lutar contra o alcoolismo. Igualmente, Cesária chamou a esse período de tempo, os Dark Years. Encorajada por Bana (cantor e empresário cabo-verdiano radicado em Portugal), Cesária Évora voltou a cantar, atuando em Portugal. Em Cabo Verde um francês chamado José da Silva persuadiu-a a ir para Paris e lá acabou por gravar um novo álbum em 1988 "La diva aux pieds nus" (A diva dos pés descalços) - que é como se apresenta nos palcos. Este álbum foi aclamado pela crítica, levando-a a iniciar a gravação do álbum "Miss Perfumado" (1992).

Desde então fixou residência na capital francesa. Cesária tornou-se uma estrela internacional aos 47 anos de idade. Em 2004 conquistou um prémio Grammy de melhor álbum de world music contemporânea. O presidente francês, Nicolas Sarkozy, distinguiu-a, em 2009, com a medalha da Legião de Honra entregue pela ministra da Cultura francesa Christine Albanel. Em setembro de 2011, depois de cancelar um conjunto de concertos por se encontrar muito debilitada, a editora, Lusafrica, anunciou que a cantora pôs um ponto final na longa carreira.

Morreu no dia 17 de dezembro de 2011, com 70 anos, por "insuficiência cardiorrespiratória aguda e tensão cardíaca elevada".



Os seus olhos cantam. São irmãos desavindos - quando um chora, o outro sorri. Morna e coladeira na esquina do mesmo olhar. Sempre foi assim, nos dias de sombra e nos de luz também. Há um brilho especial que ilumina o seu caminho. Já assim era nos tempos em que soltava a voz numa qualquer tasca da cidade do Mindelo, a troco de um cálice de grogue. Continua assim, agora que avança com passos tão pesados quanto triunfantes, por alguns dos mais importantes palcos deste mundo. "A tristeza e a alegria são vizinhas", deixa escapar com desconcertante ingenuidade. Sem dar conta, de um sopro, Cesária Évora resume os seus sessenta anos de vida. Uma simples frase explica a música que lhe corre nas veias. Morna e coladeira, tristeza e alegria. Música e sentimento - essências de uma mulher nascida com a voz num véu de ternura. Sina de uma vida feita história, que começa com "era uma vez". Era uma vez uma ilha, uma cara esculpida na rocha, o Porto Grande a abarrotar de navios, um imenso azul a embalar sonhos impossíveis. O querer ficar mas ter de partir. A miséria.

E uma criança a beber os acordes do violino no aconchego do pai: "Quando eu era uma asneira jeito de dizer criança ele começava a tocar e metia-me entre as suas pernas. Então, eu cantava uns disparates. Não me passava pela cabeça que viria a cantar a sério." Mas a avó, educada por freiras, viu nesta cena a antecâmara do milagre que, anos mais tarde, viria a realizar-se: "Disse-me que eu tinha nascido para cantar." Aos sete anos a vida ensina-lhe a primeira de muitas lições. A morna, com o seu pulsar lento e triste, não é só saudade. É mágoa, lamento. É sofrimento. E é amor. Foi no dia em que o som do violino se apagou. Justino da Cruz Évora - Djute para os amigos - morreu, deixando instrumentos de música e cinco filhos para criar. Deixa também B. Leza, o primo, o amigo, o companheiro de tocatinas. O poeta paralítico torna-se então uma espécie de pai para Cesária: "Eu ainda era uma rapariguinha e costumava ir a sua casa." É ele quem lhe ensina que a morna é uma segunda pele. Cesária - Cize como é conhecida nas ruas do Mindelo, sua cidade natal - bebe os acordes do mestre, olhos arregalados, coração a saltitar na ponta da língua. Fica com o olhar embevecido, lábios embebidos nos poemas de B. Leza. Cruza a juventude a trautear a doce melodia de "Lua Nha Testemunha" e "Miss Perfumado". Mas são tempos difíceis.


Cresce no Mindelo, à beira do Lombo - bairro mal-afamado, terra de rufias e prostitutas. "A minha mãe era cozinheira. Quando eu tinha dez anos, ela trabalhava para a D. Maria Emília Fonseca, que era directora do orfanato. Um dia, a minha mãe pediu-lhe para me arranjar um lugar." Porém, o feitio de Cesária não se verga à rigidez do lar: "Só lá estive três anos, saturei-me." Mal respira a liberdade, enceta uma vida normal: "Ajudava em casa e dava os meus passeios." É numa dessas voltas que conhece o primeiro grande amor da sua vida - Eduardo de João Chalino, marinheiro e tocador de violão. Na frescura dos seus dezasseis anos, Cize passa a acompanhá-lo nas paródias. "Fazíamos serenatas por tudo e por nada. Era só alguém dizer ‘vamos fazer uma serenata a fulano ou a fulana’ e pronto. Às vezes, já vínhamos de algum bar e era só aproveitar a embalagem." Ainda não tinha os vícios da noite - não fumava e só bebia gasosa. Limitava-se a acompanhar o seu príncipe e a sussurrar as mornas que lhe enchiam a alma. Uma bela noite, ele descobre-lhe a pureza da voz. Que ela, tímida, teimava em esconder entre duas afinações do violão. "Comecei a cantar algumas das mornas que o Morgadinho tinha feito na Guiné. Eles estavam a ouvir mas não diziam nada. Depois, o Eduardo voltou-se para mim e disse: ‘Abre a voz e canta! Tens uma voz tão bonita e estás aqui a cantar baixinho’. Levantei a voz e ele disse: ‘Estão a ver, esta menina tem uma voz maravilhosa’."

A notícia correu mais depressa que gazela. Num abrir e fechar de olhos, o Mindelo ficou a saber que a voz da menina estrábica tinha coração, alma e magia. Que o seu timbre adocicado encantava a madrugada, enfeitiçava até a mais espessa escuridão. Cize transformou-se na princesa das serenatas. Como ainda acontece, cantava por prazer. Bastava-lhe um pouco de grogue para olear as suas delicadas cordas vocais. A pouco e pouco, começou a embrenhar-se nas teias do álcool. Talvez por isso a sua voz tenha envelhecido suave como uma boa aguardente de Santo Antão. Já não bebe, mas a sua voz continua a inebriar o mundo. Das serenatas ao vinil foi um passo de pé descalço. "O Frank Cavaquinho foi quem fez a gravação. Era eu, o Luís Rendall, e parece-me que o seu filho, o John Rendall, também participou. E outros ainda cujos nomes já não me recordo. Não me pagaram nem aos outros músicos." Mas o pior ainda estava para vir. "Um dia estava a passar em frente à montra da loja do senhor Benvindo, em plena Rua de Lisboa, quando ouvi a minha voz. Fiquei espantada."


"O Frank Cavaquinho nem sequer me ofereceu um exemplar para ficar com uma recordação.» Cesária, coração de algodão, não se deixou contaminar. Novo disco, nova desilusão. "O segundo foi com o João Mimoso, aquele comerciante de São Vicente. Também gravámos para ele e nada. Nunca vi um escudo." A tristeza é um lugar estranho. Sentimento que consome sonhos, enterra ilusões. Alimenta-se de solidão. Não raras vezes, caminha de braço dado com o álcool. Nos quase onze anos que passa sem cantar, o grogue torna-se o melhor amigo de Cesária. Nos quase onze anos em que, desiludida, esconde a voz, refugia-se do mundo e tranca-se em casa da mãe, Dona Joana, com os filhos. "Tenho um rapaz, o Eduardo, que é filho de um português, e a Fernanda, que tive com o Piduquinha, que em tempos jogou futebol no Caldas da Rainha." Como ela própria diz, um e outro são fruto "daqueles amorzinhos de juventude que não me trouxeram sorte". Ainda assim, não cultiva rancores nem dá folga a ressentimentos. Tão-pouco ao tropa português, que a engravidou ainda na juventude. "Não sei se está vivo ou morto. Deixou-me com aquele menino no ventre e nunca mais disse nada." A fortaleza familiar é pilar seguro. Cize encontra ânimo para continuar a acreditar. O regresso aos palcos e aos discos acontece em 1985. Tudo graças a um convite da Organização das Mulheres do antigo partido único - o PAICV. Às vezes, há duas sem três - dessa feita, à conta da intervenção do então primeiro-ministro Pedro Pires, consegue receber: "Falei com a sua cunhada, a Arcília, e ela marcou uma audiência com ele. Contei-lhe a história e ele pôs-me em contacto com a secretária-geral da OMCV. Fui a um encontro com ela e ela disse: ‘É quanto?’, e eu respondi: ‘São cinquenta contos’. Ela passou-me um cheque. Talvez se tivesse pedido mais, teriam dado."




SODADE

Quem mostra' bo
Ess caminho longe?
Quem mostra' bo
Ess caminho longe?
Ess caminho
Pa São Tomé...

Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra Sao Nicolau...

Si bô 'screvê' me
'M ta 'screvê be
Si bô 'squecê me
'M ta 'squecê be
Até dia
Qui bô volta...

Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra Sao Nicolau...


-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-


"Rêza pa mim nha cretcheu... Scuta por Deus esse nha dor...
Imagem doce di nha vida... Jam crê morá na bô peito...
Pa consola'm esse nha dor!..."

(Cesária Évora)

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