quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Chamamé de Chimarrita...


J. C. Paixão Cortes 
Correio do Povo . 

Quando em 1964, visitamos Buenos Aires, tivemos a oportunidade preciosa de conhecer pessoalmente o grande musicólogo argentino Carlos Vega, recentemente falecido, que nos convidou para uma “charla” em sua residência.
Nossa palestra prolongou-se pela madrugada a dentro e focalizamos aspectos especialmente ligados ao folclore musical e coreográfico do gaúcho sul-americano. No outro dia estávamos no Instituto de Musicologia Argentina, “invitados” por aquele mestre que o dirigiu até sua morte. Lá nos colocou à disposição todo o material que aquela instituição cultural dispunha, material este que na maior parte fora coletado pelo próprio Carlos Vega, durante longos anos de pesquisas pelo interior do país. Revisamos, assim inúmeros instrumentos folclóricos e preciosas gravações sobre danças e canções de diferentes regiões argentinas. 



Detivemo-nos em especial análise, do fichário de oito mil registros musicais até então catalogados. 

Também nessa mesma estada na Capital portenha, a convite do Professor Strauss , diretor do Instituto de Cultura Brasileiro-Argentina, órgão adido à Embaixada Brasileira, naquele país amigo, realizamos uma série de cinco conferências sobre o Rio Grande do Sul. 



Quando nos referimos ao folclore musical e coreográfico do gaúcho sul-rio-grandense, projetamos uma série de slides que foram complementados com gravações especiais. E foi aí que um grupo de argentinos de Entre-Rios, componentes de uma sociedade de estudos folclóricos, que perguntou sobre a Chimarrita ou Chamarrita, de raízes portuguesas, já que naquela Província argentina, eles haviam encontrado, por mais de uma vez referências sobre uma melodia com tal denominação e que lhes interessava sobremodo, para estudos referentes à presença brasileira-luso em diferentes aspectos da região. 


Falamos então a esse grupo de estudiosos entre-rianos de que havíamos escutado, no próprio Instituto de Musicologia de Buenos Aires, mais de uma música gravada em disco (na época em que foram feitas as pesquisas não existiam as fitas magnéticas atuais), em que se pode apreciar a ascendência nitidamente brasileira, especialmente ligada ao folclore do gaúcho rio-grandense. Entre outras estava a nossa dança “Caranguejo” (não cangrejo como é denominado esse animal em espanhol). 

Por coincidência, naquele momento surgia no mercado de discos argentino um ritmo novo, rotulado de chamarrita, lançado por um conjunto de música nativista. 


E para os ilustres folcloristas de Entre-Rios dissemos o que já havíamos escrito com Barbosa Lessa, em nosso livro “Manual de Danças Gaúchas” sobre essa dança e acrescentamos aspectos outros que estão inseridos no nosso livro inédito – “Danças Gaúchas”, com um estudo introdutório sobre a formação das danças brasileiras (1). 


“A larga popularidade que gozou a “Chimarrita” no Rio Grande do Sul fez com que essa dança ou melhor, a sua cantiga, perdurasse após o advento e domínio das danças de pares enlaçados”. 



Em quase todo o Rio Grande do Sul, a partir de então, a “Chimarrita” foi dançada como uma espécie de chotes e valsa, ao passo que a música se assemelhava a uma havaneira. Coincidem, nesse sentido, as informações de pessoas das mais diversas regiões do Rio Grande do Sul. 


Dessa mistura de danças – o “chotes” e a “valsa” perduraram na região serrana; porém o “chotes”, na região fronteiriça com a Argentina, era mais valsa do que qualquer outra coisa. Aliás, as quadrinhas populares da “Chimarrita” na região serrana, confirmam nossa observação. 

“Vou cantar a chimarrita 
Que inda hoje não cantei 
Deus lhe dê muito bom dia 
Que inda hoje não lhe dei”. 

“Este chotes chimarrita 
Não se dança ele assim : 
Só se dança ele valseando 
Na costa do Quaraim”. 

Foi deste modo valseado que a “chimarrita” atravessou o Rio Uruguai, chegando às províncias argentinas de Corrientes e Entre-Rios , onde se difundiu com o nome de “chamarrita”. Amoldada ao rasqueado das guitarras a “chamarrita” gozou de enorme popularidade naquelas províncias. Nosso informante Pedro Oliveira Lima (br., 73 anos, natural de Palmeira), que agenciava trabalhadores correntinos e paraguaios para as empresas ervateiras de Palmeira das Missões e Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, recorda-se de ter ouvido muitas vezes a “chamarrita” em Corrientes, mas depois desta cantiga dança já ter abandonado os bailes do Rio Grande. 


Com a nossa “chimarrita” ocorreu um curioso exemplo de migração. Transpôs o Rio Uruguai e foi popular em Corrientes. Já em nossos dias segundo o depoimento do musicólogo argentino Joaquim Lopez Flores uma empresa gravadora de discos, de Buenos Aires, resolveu dar ampla divulgação a esse ritmo correntino, porém, com o nome de “chamamê”. Assim lemos à página 157 do livro “Danzas Tradicionales Argentinas”, de Joaquim Lopez Flores : “Em Buenos Aires, precisamente na Cidade que mais contribuiu para o abandono de nosso formoso folclore e que em boa hora está reagindo – nasceram dois novos nomes para “La Chamarrita” e “La Polca Correntina”. O mais ridículo – “Chamamé”; o mais irritante – “Campera”. Com relação ao primeiro nome, creio que nasceu na gerência de uma grande firma produtora de discos fonográficos desta cidade, pois lhes posso assegurar que nenhum correntino, que conheça bem a sua Província, saberá explicar donde surgiu o nome “Chamamé” : ninguém sabia o que significava esta palavra, e com o agravante de que o provinciano em alguns aspectos é muito ingênuo e por conseguinte aceita como verídico ou real qualquer inovação inexplicável que tenha partido da primeira cidade da República. Já faz tempo que venho lutando para conseguir que se torne a dar a essas produções musicais seu verdadeiro nome, isto é, as lentas “Chamarritas” e as mais vivas “Polcas Correntinas”. 


A verdade, porém, é que as estações de rádio, lançaram para toda a Argentina a nova música “chamamé”. Em Buenos Aires o sucesso desta dança foi tamanho que um dos clubes populares do “Parque Retiro” adotou justamente o nome “Chamamé”, como atração. 
E refletindo este sucesso, as estações de rádio fizeram o “chamamé” invadir mesmo a fronteira do Brasil. O “chamamé” hoje é dança popular nos bailes campeiros dos municípios de Uruguaiana, Itaquí, São Borja e São Luiz. 
Um jovem gaiteiro com quem palestramos numa viagem de ônibus, de Santo Ângelo para São Luiz (e que casualmente voltava de um baile campeiro para que fora contratado) nos fez esta curiosa revelação : 


“Aqui na fronteira, gaiteiro que não toca chamamé se arrisca a ser corrido a relho de um baile, só podendo voltar depois que aprenda”. 
O “chamamé” penetrou na fronteira do Rio Grande do Sul por volta de 1948. É dança simples de pares enlaçados e sua coreografia limita-se quase à execução de passos de valsa comuns. Tal como o nosso “baião” urbano, é manifestação culta, lançada pelas cidades : a esta altura, não pode ser considerado manifestação folclórica, subordinado que está, inteiramente às estações de rádio e compositores portenhos. 


Em síntese : a velha chamarrita dançada pelos colonizadores açoritas que chegaram à então província do Rio Grande do Sul no século 18 e que o gaúcho rio-grandense incorporou ao seu folclore como chimarrita (mais popularmente), cruzou um dia o Rio Uruguai e firma gravadora portenha sentou-lhe a marca “Chamamé” com sabor comercial. Recentemente determinado conjunto nativista argentino lança “novo” ritmo, a “chamarrita”, que nada tem a ver com a linha migratória luso-brasileira naquele país, a não ser o nome. 

Assim se “fabrica” folclore, levando muitas vezes, pessoas menos avisadas a chegarem a conclusões infundadas ... 

1) Danças Gaúchas – com estudo introdutório sobre a formação das danças brasileiras – J. C. Paixão Cortes e L. C. Barbosa Lessa – Menção Honrosa – Discoteca Municipal de São Paulo (no prelo desde 1952). 


INFORMANT
(que merecem todo e o maior respeito):
- Deonisia Ferreira de Souza, pr., 102 anos, de Canguçu, parte leste da campanha. 
- Germano Vieira da Rosa. br., 57 anos, Piratini, idem. 
- Clemente Bitencourt, br., 50 anos, Torres, litoral. 
- Antônio T. Siqueira, br., 80 anos, Rio Pardo, bacia Jacuí. 
- Josino Eleutério dos Santos, br., 93 anos, Palmeira, Missões. 
- Amância, pr., 108 anos, natural de Santo Amaro, passou a mocidade na região serrana. São Borja, ... 25.2.1951. 

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(J. M. Blanes - Uruguay)

"É oportuno lembrar que todo professor, ao ensinar uma dança, não deve ater-se somente aos fundamentos coreográficos e musicais, mas também transmitir elementos que sejam capazes de enriquecer culturalmente aqueles que se destinam... Muita gente dança, mas nem todos a sentem folcloricamente: Folclore é alma. Folclore é coração. É bom que se diga em alto tom: Tradicionalismo não é só dança. Chegar...á o momento – e nisto temos confiança absoluta – em que nosso povo, inclusive aqueles que integram entidades tradicionalistas, abandonará a impressão, hoje generalizada, de que somente aquele que estiver em traje típico é gaúcho e que só assim poderá dançar os motivos folclóricos riograndenses. Ai, então, estaremos diante de uma verdadeira consciência folclórica tradicionalista, vivendo as festas da querência, onde os participantes não terão a obrigação de se exibirem em trajes característicos (inclusive “fardados”) nem a preocupação exclusiva de apresentarem espetáculos ou “shows”!" 
Paixão Côrtes

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