terça-feira, 1 de novembro de 2011

João Sampaio em entrevista ao jornal A notícia...


COMO SURGIU A MÚSICA MISSIONEIRA?

A NOTÍCIA:Nota-se a sua sólida formação cultural,pelo rico conteúdo da sua poesia.Qualo incentivo que teve em torno dos livros,na sua juventude em Itaqui?

JOÃO SAMPAIO:Eu fui um guri extremamente tímido,ensimesmado e arredio. Meu pai tinha uma ótima biblioteca. Comprava tudo que saia.Tinha muito bom gosto. Quando eu descobri os mundos que estão dentro dos livros não parei mais de ler. Insconscientemente atendi ao pé da letra o repto do grande Mário Quintana o de que o verdadeiro analfabeto é aquele que sabendo ler não lê.Lá na estância do meu pai eu me refugiava numa velha carreta que estava com o cabeçalho apoiado na forquilha de um cinamomo e passava(recostado nos pelegos!) o dia lendo e desvendando novos mundos.Lembro da severidade com que fui repreendido,quando meu pai me pegou lendo(devorando ávidamente!) o Diário que o Che Guevara escreveu na Bolivia. Isso lá por 68/69 em plenos anos de chumbo,eu com dez anos o meu pai achava imprópria aquela leitura para mim. Aliás possuir aquele livro em casa era subversão. Outra festa foi quando eu descobri o MARTÍN FIERRO e o GRANDE SERTÃO:VEREDAS mexeu tanto comigo,me deixou tão excitado(apesar do estilo difícil)que eu não conseguia dormir e como não havia luz elétrica na estância,eu amanhecia lendo à luz de velas. Outras vezes lia na madrugada escondido,com uma lanterna de pilhas que eu tinha roubado previamente da minha mãe. Até hoje o hábito da leitura para mim é fisiológico.Isso é de família. Um primo meu de Uruguaiana,devorador de romances e novelas,estava lendo embevecido O TEMPO E O VENTO do nosso Érico Verissimo e quando chegou na parte que o CAPITÃO RODRIGO CAMBARÁ(um dos personagens mais carismáticos criados pelo Érico)morre o meu primo entrou em depressão chegando inclusive ao cúmulo de botar luto fechado. Como se tivesse perdido um amigo. O Érico soube do episódio e ficou tão encantado que escreveu-lhe uma carta carinhosa. Obedeço rigorosamente a máxima de Cícero "casa sem livros,corpo sem alma". Inclusive o melhor presente que eu posso ganhar é um livro,pois para mim quem te regala um livro está te elogiando,não é só um presente.
A NOTÍCIA:A poesia veio em primeiro e depois veio a composição musical e sempre com temas campeiros?

JOÃO SAMPAIO:Na verdade a poesia foi o refúgio que eu encontrei,para desensacar um universo campeiro que eu tinha arranchado dentro de mim. Com 14 anos fui estudar num internato do Colégio Mauá de Santa Cruz do Sul. Para um guri campeiro,que se criou na pampa ouvindo berros de touros,relinchos de potros e que teve como primeira música na infância,o tinido das rosetas das esporas do meu pai e da peonada,foi um verdadeiro choque cultural,o encontro com aquela alemoada. Gente com outros costumes,outros valores,um mundo tão diferente do meu de guri de fronteira,criado na garupa dos caiques que cruzavam o Uruguai num intercâmbio sem fronteiras. E foi assim,graças a saudade,que a poesia crioula entrou na minha vida para ficar. Tinha um professor de português em Santa Cruz do Sul,Guido Sefrin que me incentivou muito. Inclusive nos sábados eu fazia durante a aula dele,uma payada comentando as noticias da semana. Inspirado,mas não copiando,o que o Jayme Caetano Braun fazia na Rádio Guaíba acompanhado pelo Noel Guarany.

A NOTÍCIA:Voce sempre foi um estudioso sobre os temas que abraça ou isso veio mais tarde,no aprimoramento do seu trabalho?

JOÃO SAMPAIO:Eu sempre fui muito ávido pela nossa cultura. Era muito curioso e ia atrás. Deus me deu uma memória fotográfica. Aprendi espanhol sozinho,lendo,ouvindo e convivendo com los hermanos do garrão da América. Aprendi um pouco de guarani com o Noel Guarany,inclusive as suas armadilhas semânticas,prosódicas e fonéticas. É uma língua,ou um dialeto como querem os doutos e filológos,permeada e perfumada por uma aura de poesia telúrica. Como dizia Atahualpa Yupanqui,o patriarca do canto criollo "cuando se muere un cacique de mi raza es como se se incendiara toda una biblioteca.!"
Nessa área me atrevi a escrever um livro,com um título pretensiosamente nerudiano chamado VINTE E SEIS POEMAS GUARANIS & CINCO CANÇÕES DE RIO editado pelo IEL(INstituto Estadual do Livro)com parecer altamente elogioso e favorável do grande Sergio Faraco. Nessa obra eu resgato a simplicidade, a magia e a inocência das lendas e também da urdidura complexa das crendices e superstições que são o espelho da alma guarani e missioneira,pesquisados por nós no Brasil,na Argentina e no Paraguai. Isso abrange desde as lendas etiológicas da fauna e da flora,até as canções de ninar,a sabedoria aborígene,os mitos guaranis e uma mágica e inventiva versão índia do Dilúvio,com o respectivo Noé bugre e toda a bicharada da Arca.Estou sempre pesquisando a arte crioula,e sem xenofobia estudo toda a geografia do gauchismo,que não é só o Rio Grande,como querem,em sua estreiteza sociológica,antropológica e histórica os CTGs e o Movimento Oficial Gaúcho.


A NOTÍCIA:A crítica o considera uma das maiores expressões no estilo payador.Como começou isso e quais as influências que teve nessa área?

JOÃO SAMPAIO:Quando eu(ainda muito guri) comecei a militar na arte pampeana,eu me guiava por dois sinais luminosos na poesia:Aureliano de Figueiredo Pinto e Jayme Caetano Braun. Influenciado pela exuberância do Jayme comecei a praticar a dificil arte da payada.Muitas vezes,nas pulperias costeiras dos dois lados do Uruguai,ficavámos hasta que despuntase el alba guitarreando e payando de contrapunto eu e o Noel Guarany,que morava em Itaqui,meu maestro e também meu querido irmão espiritual que até hoje me faz muita falta. Para mim e para a verdadeira arte missioneira. Eram payadas inocentes,onde vergastavámos a ditadura da época e denunciavámos as injustiças sociais de maneira veemente e reverenciavámos as coisas eternas da condição humana. Hoje ainda improviso se for preciso. Mas gosto mesmo é de escrever. E quando estou deprimido não procuro analistas,pratico VERSOTERAPIA e me curo com o meu canto pampeano que um Tupã gaucho y misionero me alcançou de regalo.

A NOTÍCIA:Voce foi parceiro do Noel Guarany num elogiado LP. Com quais músicas?Fale sobre isso.

JOÃO SAMPAIO:Na verdade quem me descobriu para a música foi o Noel Guarany e além de me ensinar tanta coisa,ainda tive a honra de ser,juntamente com Jayme Caetano Braun(que na sua última aparição pública me indicou como seu sucessor!) e Aureliano de Figueiredo Pinto o letrista mais gravado pelo Noel.
Nas Missões a música sempre foi muito importante. Se cantava para tudo:para trabalhar,para festejar,para louvar o nosso Tupã guarani,para guerrear e também para prantear e enterrar os nossos mortos. O lendário Padre Antonio Sepp,formou milhares de músicos,virtuoses que tocavam com a notação musical mais avançada da época. Depois da expulsão dos jesuítas e do traslado dos índios,para o outro lado do rio aconteceu(com a chegada dos imigrantes gringos e outros fatores sócio-econômicos) uma certa "desaceleração" nessa musicalidade. Mais contemporâneamente,sobraram músicos espontâneos como o Cabo Laranjeira, o Reduzino Malaquias , o Chico Guedes e muitos outros,que,a duras penas,mantiveram galhardamente esse tesouro musical,lutando para não se contaminar com imitações dos Bertussi(que nada tinha e nada tem a ver conosco!) e de duplas sertanejas com temáticas postiças e artificiais,que não contextualizavam o canto da nossa terra e do nosso povo. E foi aí que surgiu a genialidade de Noel Guarany,que andou com sua guitarra mágica peregrinando pela América e miscigenou sonoridades remanescentes do antigo cancioneiro missioneiro guarani,com timbres platinos,uruguaios,argentinos e paraguaios. Disso tudo o Noel fermentou o bolo musical que hoje é conhecido como música missioneira. O Noel Guarany,foi,como diria Brecht,um homem imprescíndivel para o tempo em que viveu. Foi um pioneiro e um precursor único. Foi o primeiro a gravar uma chamarrita(que aqui era só dança coreográfica!),foi o primeiro a gravar uma cifra(ritmo do qual originou-se a milonga!)foi o primeiro a falar em bailanta,pulperia e também o primeiro a gravar um rasguido doble. E além disso fez escola. Atrás do rastro encantado deixado por ele,vieram o Pedro Ortaça e o Cenair Maicá,que cantavam outro gênero de música e se encontraram na picada aberta pelo Noel.O Noel foi tão importante que ,além de dotar a música gaúcha de uma face índia,que ela não tinha,abriu ainda para o grande Jayme Caetano Braun uma janela de latino-americanidade,livrando com isso o Jayme,daquela ortodoxia cetegeana e conservadora que ele tinha no início.Para mim,estudioso comprometido com a verdade,Noel Guarany é o verdadeiro marco divisório da música gaúcha. Surgiu com qualidade vocal,melodócia e temática muito antes da Califórnia e congêneres. Tinha carisma e estilo próprio e cantava com grande dignidade. Além do herdeiro espiritual por ele escolhido que é o Jorge Guedes,deixou inúmeros seguidores de sua escola como Luiz Marenco,Lisandro Amaral e muitos outros.Sua música tem uma estranha e mágica fosforêscencia é o pajé bugre da musicalidade missioneira. O Rio Grande tem uma dívida impagável para com o Noel Guarany.

A NOTÍCIA: Quais seus outros parceiros musicais?

JOÃO SAMPAIO: Ao longo do tempo,depois de ser descoberto pelo Noel,fui sendo procurado pela maioria dos cantores e compositores da muscicalidade contemporânea do Rio Grande do Sul. São muito poucos os artistas que militam na nossa música que até hoje não gravaram algo nosso.

A NOTÍCIA: CANTO AO CAVALO CRIOULO é uma homenagem à montaria do gaúcho. Como se inspirou nisso?

JOÃO SAMPAIO: CANTO AO CAVALO CRIOULO,foi escrito quando eu era ainda um guri. Lá por 1977 e só foi editado em 1982,pelo abnegado operário da nossa cultura,que foi o Martins Livreiro.
O opúsculo foi prefaciado pelo Noel Guarany e pelo Jayme Cateano Braun. Eu ainda moro no campo,tenho uma estanciola localizada na Coxilha do Rincão da Cruz,Centro Geográfico do município de Itaqui e estou permanentemente em contato com o campo,com o homem do campo e com os motivos que são a matéria-prima que endulza con su miel a nossa arte.

A NOTÍCIA: Quais os livros de poemas já lançados? Algum novo à vista?

JOÃO SAMPAIO:Tenho quase duas dezenas de livros editados. Na área da poesia crioula bilingue,do anedotário,do folclore e da cultura afro-ameríndia. Inclusive um chamado CANTOS DE TABA & SENZALA,editado na Argentina, e que juntamente com o meu compadre Jorge Guedes pretendemos transformar num CD,um projeto audacioso que resgata a musicalidade e a contribuição cultural da raça negra e do índio,ambos tão vilipendiados ao longo dos séculos. A raça negra se emancipou socialmente mas o índio(o precursor do gaúcho!) continua sendo tratado como um ser exótico. Como se estivesse num zoológico.

A NOTÍCIA:Quais as premiações que destacaria na na sua carreira?

JOÃO SAMPAIO:Já fomos premiados em vários eventos e em pencas festivaleiras,mas o maior prêmio é ser ouvido,lido,consumido pelo nosso povo e assim ajudar a fazer a manutenção e a preservação do patrimônio cultural da nossa terra e da nossa identidade sociológica. Também coinsidero prêmio a edição desse livro sobre os guaranis pelo IEL(Instituto Estadual do Livro)e também ter textos publicados na Argentina,no Uruguai,no Paraguai,poemas traduzidos no Japão e letras gravadas na Europa(Suiça) e nos Estados Unidos.

A NOTÍCIA: TOURO FUMAÇA, um dos seus maiores sucessos,na voz do Mano Lima,é uma música bonita e triste ao mesmo tempo,muito valorizada na sua obra. O que o inspirou mesmo?

JOÃO SAMPAIO: TOURO FUMAÇA que se popularizou na interpretação do meu compadre Mano Lima,é o relato de uma tragédia rural que eu ouví lá nos longínquos galpões da infância e que resolvi transformar num pequeno CONTO CRIOULO RIMADO,inovação que estamos lançando no nosso novo CD DUPLO(USA/DISCOS) chamado 40 MARCAS CAMPEIRAS DO PAÍS DA GAUCHADA. Inclusive um desses contos do CD(são sete!) impressionou muito o Sergio Faraco,nosso contista maior,que inspirado nele,pretende nos brindar com mais um dos seus contos magistrais e antológicos.

A NOTÍCIA: Algo a dizer sobre São Luiz Gonzaga e as Missões,terra de Noel,Ortaça,Guedes ,Jayme Braun e de tantos amigos?

JOÃO SAMPAIO: São Luiz Gonzaga é o meu segundo rincão. Tenho tantas vinculações com esse povo e essa terra. Estou em perfeita sintonia com a energia que emana e paira sobre essa lendária redução jesuitica e cada vez que a visito me sinto habitado pela mesma força cósmica que deixaram os pajés e os duendes missioneiros. Em São Luiz fiz e tenho tantos amigos queridos,pessoas raras como o Pedro Ortaça e família,querido irmão de ideário artístico,um grande artista popular. Meu compadre Jorge Guedes e família,que tem clarinadas na voz e um cacique guarani arranchado no coração;meu compadre Xirú Missioneiro dentro da sua singeleza um grande representante das Missões;meu amigo Nenê Guedes e família outro missioneiro que honra o chão em que pisa;os amigos da Casa do Poeta na pessoa da Vãnia Coimbra,a lembrança querida ,amiga e fraterna do Zizi(José Luiz da Cunha Pacheco),do Nélio Lopes e de tantos outros queridos amigos que nos fazem melhores do que realmente somos.
São Luiz é o Distrito Federal das Missões. A Capital Nacional do Folclore Missioneiro e o meu segundo lar.

Deixo um recado de amigo
Pra quem sofre e se maldiz
Se na tua terra parceiro
Te virarem o nariz
Arruma as malas na hora
E vem de muda pra São LUIZ!!!

* Entrevista que foi publicada no jornal A NOTÍCIA
nos dias 22/23 & 26 de outubro de 2011.

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"O CORRUPTO é um animal extremamente parecido com um NÃO CORRUPTO. Mas esta espécie está quase extinta por ser fácil de capturar. Está bem. Deus é brasileiro. Mas para defender o Brasil de TANTA CORRUPÇÃO só colocando Deus no gol."
MILLÔR FERNANDES

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